No Martins: a dedicação do talento à denúncia (pt-BR)
- luisakarman
- Jun 24, 2020
- 8 min read
Em meio aos ecos da pauta anti-racista do maior movimento por direitos civis da nossa geração, inaugura a exposição solo ‘Social Signs’ (sinais sociais) do artista contemporâneo brasileiro No Martins, na galeria londrina Jack Bell (acesso restrito e por agendamento, de 15 de Junho a 10 de Julho de 2020). Vale dizer que a galeria é focada na exposição de arte contemporânea ao redor do mundo e tem uma forte tradição de representação de artistas africanos e afro-diaspóricos que antecede o momento atual.
Fotos da instalação © Jack Bell Gallery
No Martins nasceu em 1987 na maior cidade brasileira, São Paulo. Do alto dos seus 12 milhões de habitantes, São Paulo já foi chamada de ‘megametropolis’ por seu status como uma das áreas urbanas mais populosas do mundo. No excelente texto crítico que apresenta a exposição, a curadora Diane Lima se refere à cidade como uma necrópolis, usando o termo cunhado por Achille Mbembe e para descrever “o poder e capacidade de ditar quem pode e quem não pode viver". A realidade paulista é pautada por esse paradigma, conforme as políticas de governança urbana travam uma guerra contra o “negro pobre urbano” através de chacinas, marginalização econômica e encarceramento em massa – temas que Martins encara de frente em suas obras.
Martins demonstra em sua pintura a proximidade dessa técnica com o grafite e a pixação, elementos centrais da cultura hip-hop que foram as primeiras formas artísticas de expressão usadas pelo artista na sua experiência navegando o espaço da cidade. A narrativa poética do artista incorpora elementos visuais urbanos como placas de rua, manchetes de jornal, imagens de propaganda e câmeras de segurança que nos convidam a pensar sobre o que Lima chama de “regimes de ver e ser visto”. Comentando sobre o trabalho de Martins em outra ocasião, o curador Hélio Menezes discute como o artista coloca o espectador em uma posição de observação direta da cena representada e projetando sobre ele um senso de responsabilidade. Eu diria que esse dispositivo artístico também pode ser visto em conexão com a hiper-visibilidade da violência para aqueles em áreas alvo como favelas, que contrasta com o privilégio de fazer vista grossa que é dado às elites brancas através da distância da violência, tanto física quanto social.

Martins comenta as dissonâncias da desigualdade tanto em relação a temas sociais gerais quanto no que diz respeito à sua própria carreira. Em 2019, como parte de sua exposição na Galeria Baró (SP), o artista incluiu uma catraca logo na entrada do espaço como um símbolo das restrições de acesso que ele e os seus enfrentam, mas que aqueles que consomem sua arte no espaço de uma galeria nos Jardins não costumam nem imaginar. Entrevistando No nesse video, Adriana Couto descreve a trajetória do artista da periferia de São Paulo para uma galeria em um bairro nobre como um ‘campo minado’ – termo que intitula a pintura de 2019 agora exposta na galeria Jack Bell.

No Martins, Campo Minado, 2019, acrílica sobre metal e tela © o artista
‘Campo Minado’ é um auto-retrato duplo em que o artista é representado tanto como uma silhueta atravessada em uma placa de rua proibitiva quanto como um corpo que encaramos de costas, com as mãos na parede durante uma abordagem policial. A proximidade dessas duas imagens articula tanto como o acesso é negado e como essa proibição é reforçada e mantida. Ao redor desses retratos vemos placas como ‘galeria’, ‘universidade’ e “é proibida a entrada de estranhos”, placa comum cuja mensagem se assemelha a que o artista pinta no canto inferior esquerdo: é proibida a circulação de indivíduos fora do padrão. Aqui, o artista aborda o tema das divisões geográficas e sociais que se dão ao longo de linhas raciais e as dificuldades de acesso delimitadas por esses parâmetros, seja no campo da arte, da educação ou simplesmente no direito de ir e vir – também retratado na pintura ‘Dia do Descobrimento’ (2019). Na imagem central, o número 13 indica a idade que o artista tinha quando foi enquadrado pela polícia pela primeira vez. Um dispositivo pictorial parecido é usado em ‘Um dia da caça, outro do caçador’ (2020), em que a letra e números J17 estampam um grande porco carregado por um jovem negro nas costas – em referência ao nome e número de candidato do atual presidente Bolsonaro e seu desdém por vidas negras explicitado em seus discursos.
No Martins, Um dia da caça, outro do caçador, 2020, acrílica sobre tela © o artista O comentário sobre dinâmicas de poder se estende dessa obra à pintura Estratagema (2020), em que Martins representa um homem negro sentado diante de si mesmo em um jogo de xadrez composto apenas de peças brancas – uma imagem que Lima destaca em seu texto como uma alegoria para a criação de estratégias de liberdade. Essa obra dialoga com a escultura ‘Regras do Jogo’, que o artista expos na SP Arte em 2019, onde o Brasil é representado por um tabuleiro de xadrez em que a corte é formada por peças brancas – uma alusão à detenção de poderes por uma pequena parcela de elite branca do país. Ao redor desse centro privilegiado, os ‘peões’ pretos e marginalizados são dispostos em um contraste que ilustra as geografias urbanas e dinâmicas de poder de um país com desigualdades sociais enraizadas no maior regime de escravidão da história mundial.
No Martins, Estratagema (esq.), 2020, acrílica sobre tela & Rules of the Game, 2018, acrílica sobre madeira e plástico © o artista
A relação entre ‘Estratagema’ e ‘Regras do Jogo’ demonstra a integração que Martins promove entre suas pinturas e suas obras em outros meios, como escultura, instalação, performances, vídeos, gravuras em metal e pinturas em suportes não convencionais como lonas de caminhão e notas de dinheiro. Sobre pintar em lonas, o artista aponta que objetos usados tem uma história própria e seus remendos se comparam com as cicatrizes das histórias vividas que ele representa. Na série ‘Pra ver se dão valor’, as histórias contadas também estão atreladas às especificidades do meio onde são pintadas: retratos de sujeitos negros em notas de real são um lembrete de que o corpo negro já foi moeda de troca. Pintando por cima do rosto greco-romano que estampa o real, questiona-se a predominância de rostos brancos nas notas de países majoritariamente negros em população.

No Martins, série Pra ver se dão valor, data não encontrada, acrílica sobre cédula © o artista
O trabalho de Martins dialoga tanto em forma quanto em conteúdo com manchetes de jornais e estatísticas que colocam em evidência o genocídio negro no Brasil. Uma de suas pinturas da série #JáBasta retrata um homem negro cercado de manchetes recortadas que incluem “polícia deram mais de 100 tiros contra carro de jovens mortos no Rio” e “exército dispara 80 tiros contra carro de família no Rio e mata músico”. A grande escala dessa série se relaciona com os grafites que pintava, mas também complementa o que o artista chama de um “grito silencioso” contra o genocídio.

No Martins, Já Basta III, Série Já Basta, data não encontrada © o artista
Também em exposição na galeria Jack Bell está a obra ‘Disciplinar e Punir’ (2020), uma representação da ameaça que pessoas negras encaram desde muito pequenas, refletida no uso de violência pelo estado contra jovens negros no país (como Lima nos lembra em seu texto, um jovem negro morre a cada 23 minutos no Brasil). As palavras ‘ordem e progresso’ estampadas na pintura e na nossa bandeira demonstram o valor dessa obra como retrato de um país em que o maior recurso estatal dirigido à população negra é a polícia, enquanto os gastos do estado com benefícios sociais e qualidade básica de vida são assustadoramente inferiores. Infelizmente, essa pintura evoca a lembrança de vários eventos em que a violência policial resultou na morte de crianças inocentes, incluindo os casos mais recentes de João Pedro Mattos, de 14 anos, morto por um dos 70 tiros disparados contra sua casa no Rio de Janeiro em 18 de maio, e Guilherme Silva Guedes, de 15 anos, que foi encontrado morto com múltiplos disparos e sinais de tortura em São Paulo no dia 15 de Julho, levando à protestos por #justiçaporGuilherme.
No Martins, Discipline and Punish, 2020, acrílica sobre tela © o artista
A multiplicidade de tragédias como essas faz com que o talento de Martins seja dedicado à representação de sua indignação. Como Lima relembra, o artista foi forjado por um ambiente que o inscreve historicamente numa tradição de denúncias – “um capítulo extenso encontrado na história das estéticas negras nas Américas, águas do Atlântico e internacionalmente” (tradução livre do inglês). Denunciar a violência e proclamar resistência é uma postura tomada também pelo artista contemporâneo carioca Maxwell Alexandre, que retrata o perigo que a violência policial apresenta para crianças negras quando pinta camisas de escolas públicas do Rio ensanguentadas – que viraram símbolo dessas tragédias depois da morte de Marcos Vinícius da Silva, 14 anos, que foi morte na favela na Maré e morreu nos braços da mãe vestindo uniforme da escola.
Como Claudinei Roberto aponta, a preocupação social é um padrão na arte brasileira que tem persistentemente gerado obras icônicas desde o tempo da ditadura militar. Como ele argumenta aqui, Martins faz parte dessa ‘família artística que rompe com o preconceito contra a arte socialmente engajada em favor de narrativas plásticas de forte caráter social e de denúncia, colocando seu nome ao lado de Sidney Amaral, Moisés Patrício and Rosana Paulino - que foi professora de Martins em 2017 e curadora de suas obras na exposição ‘Poéticas Negras’, no SENAC Lapa (SP) em 2018 (veja esse post). Também em 2018, Martins foi parte da exposição Histórias Afro-Atlânticas do MASP, ao lado de artistas como esses mencionados. A obra de Martins foi parte de um núcleo entitulado 'Resistência e Ativismo', em meio a uma exposição motivada pelo desejo e necessidade de "traçar paralelos, fricções e diálogos entre as culturas visuais dos territórios afro-atlânticos—suas vivências, criações, cultos e filosofias", como coloca o site do MASP.
No Martins, Vilões, 2017, acrílica sobre painel © o artista
Aqui, incluo a descrição da obra publicada nas redes do Instituto Tomie Ohtake: “Neste trabalho de Nô Martins, o artista retrata cinco crianças negras em frente a casas simples, numa viela sem asfalto que lembra a periferia da Zona Leste de São Paulo, onde o artista nasceu e reside. Os jovens aparecem num momento de diversão, em poses distraídas que denotam orgulho e pertencimento ao lugar. Sobre suas cabeças, contudo, três pares de círculos vermelhos e azuis – as cores das luzes do camburão, fazendo as vezes de nuvens sobre um céu escuro e acinzentado – anunciam o perigo latente de uma abordagem policial. O título Vilão em primeiro lugar ao habitante da “vila”, o qual, segundo as estatísticas e aos olhos da polícia, é também um personagem que deve ser combatido. Refere-se, em segundo, à brincadeira, comum entre os jovens da região, de chamar uns aos outros por esse mesmo vocativo, nesse caso em sinal de amizade.”

A persistência da hashtag #JáBasta demonstra o fato de que os níveis alarmantes da violência contra corpos negros no Brasil atualmente não é apenas intolerável, como também tem persistentemente superado os limites do absurdo e da crueldade já há muito tempo. Em sua obra ‘Gravata Extra’, Martins inclui a #JáBasta junto à silhueta de um homem que veste uma gravata com a bandeira do Brasil, abaixo do logo do supermercado Extra, onde Pedro Henrique Gozaga, de 19 anos, foi morto por um segurança que o asfixiou usando o golpe ‘gravata’, lembrado no título. Aqui, o artista se refere não apenas a esse episódio, mas à banalidade de assassinatos como esse em um país que concede a autorização a matar a muitos, negando o direito de viver a muitos outros, e recompensando o uso de violência com a impunidade. “O ser humano é descartável no Brasil”, como cantaram os Racionais nos anos 90.
Essa não foi e não poderia ter sido uma análise leve. Os tempos de quarentena podem ter reafirmado o valor da arte como espaço do escape e da fantasia, mas um momento social que inclui o maior movimento por direitos civis da nossa geração – a qual o mundo das artes está tentando reagir, avaliando suas próprias fundações e dinâmicas racistas – sublinha a relevância de obras como as de Martins e de exposições como ‘Sinais Sociais’.

No Martins, Dia do Descrobrimento, 2019 (tinta acrílica e folha de ouro sobre tela) © o artista
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