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Itinerarte #1: o que eu vi em Singapura

  • Writer: luisakarman
    luisakarman
  • Aug 21, 2022
  • 9 min read

Quero seguir experimentando com outros tipos de posts e jeitos diferentes de falar sobre artes - porque existem tantos quanto existem jeitos de experimenta-la. 'Itinerarte' é uma série nova pra revisitar coisas que eu vi em museus e galerias que visitei, fotografei, jurei pra mim mesma que ia pesquisar um dia e nunca mais fui atrás. Aqui, além de revisitar essa coleção de obras fotografadas, compartilho um pouco do que me marcou nessas 'itinerâncias' por exposições e mapeio caminhos de pesquisas futuras. Então simbora!


Nesse post, quero mostrar e contar um pouco sobre as obras que vi numa visita à National Gallery Singapore, quando estive lá em Dezembro/2019. Eu só tinha ouvido falar de um artista singaporense na vida e o que eu sei das artes do sudeste asiático é principalmente sobre técnicas artesanais ou o que eu aprendi num curso da faculdade focado em Budismo nessa região, então conheci principalmente esculturas budistas.

Tudo isso pra dizer que: eu não tinha expectativas do que ia encontrar, mas achei a seleção de obras interessantíssima e a proposta de trazer artes da região toda expandiu muito os caminhos das minhas pesquisas futuras.

Recentemente, o mercado de arte de Singapura começou a bombar e isso me levou a pensar nesse post aqui que há muito tinha engavetado. Inclusive, muito interessante ver como, entre as minhas primeiras pesquisas e as de agora, pós esse boom do mercado, muito mais se escreveu sobre as obras.


Agora focando nas obras em si:


Kinupot por Edgar Talusan Fernandez

1977, reconstruida em 2006


Contra a superfície da tela moldada sobre estrutura de madeira, vemos o relevo de mãos e pés que parecem testar os limites da escultura, tentando escapar.

Essa aparente claustrofobia e opressão se cria pra representar os sequestros de ativistas políticos pelos militares e grupos paramilitares durante a ditadura do presidente filipino Ferdinand Marcos, que durou de 1972 a 1981.

Na hora, isso me lembrou o período da ditadura militar no Brasil e os muitos desaparecimentos, sequestros e assassinatos promovidos por esse regime autoritário e violento.

Em ambos os casos, a arte aparece como terreno pra processar esses traumas não resolvidos, ou viver um luto que não se pode ritualizar de outra forma já que muitos dos corpos nunca foram encontrados - algo que a ausência de um corpo com feições nessa escultura também evoca.

Alem de memória desse momento, a obra também pode ser entendida como alegoria para a censura e abafamento de gritos de protestos em muitos contextos ao redor do mundo em que o autoritarismo volta a ganhar espaço - o que inclui negar as historias que obras como essa servem pra memorializar.

Kinupot estava numa sala com algumas outras obras sobre arte e protesto, o que me pareceu irônico considerando que Singapura tem uma atitude bastante restritiva quanto à mobilizações políticas populares - não à toa o museu não incluiu nenhuma obra sobre Singapura nessa sala.

Seguimos agora com obras menos indigestas - e isso é só um aviso de mudança de tom, não é uma crítica, pois tem assuntos que não tem que ser palatáveis, mesmo.

 

Reflections por Fatimah Chik

1947

Batik


Fatimah Chik, da Malásia, é uma artista têxtil brilhante que trabalha com a técnica do batik.

O batik é uma prática cultural tradicional no sudeste asiático, originada na Indonésia, que consiste em uma técnica de tingimento de tecidos.


Como funciona: estampas são desenhadas ou carimbadas com cera no tecido e aonde há cera o tingimento não pega. Isso permite que a cor seja aplicada seletivamente em 'blocos'. O batik foi comercializado intensivamente pelos holandeses, que colonizaram a Indonésia. Através desse tráfego de mercadorias, a técnica do batik se disseminou e chegou em países do continente africano, onde se popularizou e foi usada pra expressar os idiomas visuais locais - a ponto de hoje em dia tecidos 'wax print' serem visualmente associados com o oeste da África.

Inclusive, o artista Britânico-Nigeriano Yinka Shonibare usa essas estampas justamente pra questionar o que é a aparência de 'africanidade' e propor que se pense nos intercâmbios culturais produzidos pelo comércio colonial. Voltando pra Fatimah Chik: nascida na Malásia, aonde tecidos são uma herança cultural e criativa importante, Fatimah se dedicou a explorar o batik desde jovem, inicialmente no contexto do design. Ela é formada como designer têxtil e exerceu a profissão, mas com o tempo passou a pensar o batik num ponto de intersecção entre a moda e arte.


Aqui cabe comentar sobre uma distinção comum que se faz entre as 'artes finas' (pintura e escultura) e outras formas de arte que frequentemente são chamadas de 'artesanato' - categoria em que as artes têxteis costumam a se encaixar.

Essa dicotomia é muito comum no mundo ocidental, onde ela foi enraizada com o Renascimento, mas pelo que minhas leituras de intelectuais do sudeste asiático indicam, mesmo na região onde práticas têxteis são muito valorizadas elas não atingem o status de arte.

Foi aí que Fatimah se destacou: quando mostrou quão arbitrária é a divisão entre o decorativo e o artístico, apresentando o batik como pintura e assim inserindo-o no universo das 'belas artes'. Essa "transição do batik artesanato pro batik arte", como vi algumas matérias discutirem, aconteceu nos anos 80, quando Fatimah pesquisou extensivamente as tradições têxteis e estampas simbólicas do sudeste asiático e investigou o batik como forma artística.

Em obras como essa, ela usa retalhos de tecidos batik para produzir uma colagem, em que camadas se sobrepõem para criar uma profundidade visual que mostra a complexidade da técnica. Recentemente, Fatimah incorporou na sua prática a técnica Japonesa 'Shibori', termo que descreve o tingimento de tecidos, inclusive o tie-dye, que ela soma ao batik em construções ainda mais ricas em texturas e estamparia.

 

Batik Variant Truntum II por Mochtar Apin

1985

Acrilica sobre tela


Nessa obra, o batik é interpretado pelo artista indonésio Mochtar Apin. Pesquisando pra esse post, descobri que outras obras dele e fiquei encantada por esse pintor tão prolífico e que explorou estilos tão diversos - recomendo fortemente explorar mais obras dele aqui e aqui. Achei poucas informações online, mas ele parece ter sido um representante importante da estética modernista na Indonésia. Curiosidade: seu irmão, Rivai Apin, foi um poeta que também se envolveu em pensar um modernismo, nesse caso na literatura, no país. Esse texto conta que ambos foram parte de uma geração de artistas da era pós-colonial na Indonésia que via promessa na finalmente alcançada ausência da censura colonial, mas que também carregou as cicatrizes do aprisionamento político da nova ordem que se estabeleceu. Rivai "morreu na pobreza e obscuridade", mas não descobri muito mais sobre Mochtar - o que talvez indique que esse foi também o seu destino... Nesses casos, a gente fica na torcida de que algum pesquisador local trombe um arquivo ou publique uma pesquisa trazendo mais detalhes a tona. Se surgir, volto aqui com notícias.

 

Saya Goreng Kamu II (I Fry You II) por Mella Jaarsma

2000

Couro de cobra e peles de esquilos, fotografias

Essa vestimenta foi construída a partir de peles de cobra coletadas na região de Yogyarta, onde cobras e esquilos são caçados como pestes pelos fazendeiros que tem suas plantações danificadas. Segundo a artista, em outros contextos, esses animais são adorados - e é essa contradição entre a percepção de seres vivos não-humanos e humanos que ela trata aqui. Lendo isso me veio a expressão lobo em pele de cordeiro, tanto pela atribuição de significado e caráter ao animal a partir de uma perspectiva, nesse caso pastoral rs, quanto pela fotografia de uma pessoa em pele de cobra.


A meu ver, a obra também conecta com uma história sobre o Buda que conta que, antes de atingir o nirvana, ele estava meditando e foi protegido de uma tempestade que poderia distraí-lo por uma cobra que abriu seu capelo sobre sua cabeça. Inclui aqui uma imagem de uma escultura do Cambodia que retrata esse momento da história do Buda.

 

East Coast Vendor por Georgette Chen

c. 1961

Oleo sobre tela


Descrita no site da galeria como uma das artistas pioneiras de Singapura, Geogette Chen foi radicada em Paris, Nova York e Shangai antes de se estabelecer em seu país natal. Ela foi conhecida por seu estilo pós-Impressionista e seu envolvimento no nascimento do estilo Nanyang de pintura na região.

A Academia de Arte Nanyang surgiu em Singapura nos anos 1950, inicialmente em torno de imigrantes chineses em Singapura nos anos 1950, que combinaram seus treinamentos em pintura tradicional chinesa (principalmente da escola de Shangai na época) com as escolas de arte de Paris, como o cubismo e o pós-impressionismo.

Essa mistura de estilos - como aconteceu em vários modernismos do sul global, inclusive no BR - tinha como objetivo produzir um estilo regional distinto, como indica o nome Nanyang, que pode ser traduzido como 'mares do sul'. Acho que nessa pintura, isso se expressa tanto no que se retrata - uma cena cotidiana de uma comerciante da costa - tanto no tratamento das texturas que mostra os tecidos e estamparias característicos da região.

 

Sem titulo (Malayan Life) por Seah Kim Joo

1968

Batik

Detalhe do painel central


Essa talvez seja minha obra predileta da visita toda, fiquei parada na frente dela um tempão tentando destrinchar cada momento da história que está sendo contada. Inclui várias imagens e um vídeo pra tentar passar essa mesma experiência por aqui.



Mais uma arte influenciada pelo batik, que foi interesse de Seah Kim Joo desde a infâcia. Ele estudou tanto arte num ambiente formal acadêmico, quanto batik enquanto aprendiz, adaptando as técnicas para criar obras de arte modernas representando a vida na Malásia - titulo dessa obra. Essa combinação foi inspirada pela influencia do artista Chuah Thean Teng, conterrâneo de Joo, que também procurava, no estilo Nanyang, expressar temas contemporâneos adaptando técnicas tradicionais como o batik.

 

(detalhe de) Artist and Model por Liu Kang

1954, oleo sobre tela


Pioneiro do estilo Nanyang ao lado de Georgette Chen, Liu Kang também retratou cenas locais em um estilo inspirado pelos pós-impressionistas, mas sua obra tem uma influência particular dos fauvismo, vanguarda europeia que focava no uso de cores fortes e não necessariamente realistas - como vemos aqui. Inclui aqui algumas obras dele.






Balinese Woman Seated por Liu Kang

1952, pastel e carvao


Nessa segunda imagem, o artista retrata uma mulher balinesa. De acordo com esse texto, Liu Kang e outros pioneiros do estilo tiveram sua produção artística inspirada por uma viagem a Bali, na Indonésia, em 1952, em que decidiram incorporar as cores vibrantes, sons e paisagens balinesas no estilo Nanyang.

Quando visitei a Singapore National Gallery, boa parte da coleção de obras de Liu Kang tem a cultura de Bali como referência.

No desenho abaixo, o artista retrata a prática tradicional de dança da região.

Three Balinese Dancers por Liu Kang

1952, pastel e carvão


Essa tradição se expressa em diferentes estilos, que em geral usam movimentos não só com os pés, mas também com a cabeça e com as mãos e dedos - que na obra me parecem ter a movimentação destacada.

Além da dramatização nos movimentos, a dança balinesa inclui figurinos espetaculares, também destacados por Liu Kang na pintura abaixo, 'Souri'. Nesse retrato, vemos em ainda mais detalhe a ornamentação de dançarines de dança balinesa, que inclui desde estamparias batik em várias cores até peças de cabeça elaboradas.


Achei muito interessante também poder observar o processo do artista através das múltiplas versões e 'rascunhos' disponíveis na coleção. No caso de 'Siesta em Bali', temos um estudo preliminar em tinta preta, uma versão em pastel e a pintura final - com destaque pra florzinha branca colocada na mão da mulher retratada.


Liu Kang: Siesta in Bali (Sketch 1), 1952, ink on paper | Siesta, 1952, pastel on paper | Siesta in Bali, 1957, oil on canvas

 

Portrait of Ni Pollok with Headdress by Adrien-Jean le Mayeur de Merprès

c. 1930s-1950s, pastel, conté and watercolour on paper


Agora a gente vai entrar numa discussão complicada, que se relaciona bastante com alguns dos debates recentes sobre Gaugin e sua apropriação dos visuais do Tahiti descontextualizados, que tem outros agravantes.

Le Mayeur foi um impressionista belga, que parece ter ido parar na Indonesia pra escapar da Segunda Guerra Mundial, numa viagem que inclui a Italia, o norte da Africa, a India, o Cambodia, Madagascar, Turquia. Esse tipo de viagem era bem comum na época, não so pelo contexto da guerra, mas também porque artistas Europeus tavam frustrados com seus idiomas visuais locais e iam perseguir um fascínio pelo 'exótico', numa busca pelo paraíso 'intocado' e habitado por pessoas que - de acordo com uma visão primitivista - pareciam ocupar outro tempo, anterior à civilização que desiludia os artistas. Muitas vezes, iam parar nas colônias dos países onde nasceram e mais vezes ainda usavam a alteridade desse universo estrangeiro pra reforçar sua aura de rebeldia.

O clássico da apropriação: quem apropria a partir de uma posição de poder sai de vanguardista/rebelde/corajoso/pioneiro, quem é apropriado é relegado à omissão sem crédito.

Isso aconteceu com a exposição de obras orientalistas por Delacroix no Marrocos, com as referências Africanas não-creditadas do Picasso e, como já mencionei, com o Gaugin no Tahiti.

Me parece, pela época, que o fenômeno aqui é parecido. Mas resolvi incluir essas obras porque o contexto de exposição faz toda diferença: aqui, a perspectiva europeia não é apresentada na Europa pra um público Europeu (reforçando a visão desse continente sobre si mesma e seu 'Outro'). Nesse museu, essas obras são pontuais em relação à maioria de obras de artistas da região, o que faz com que elas não ganhem uma aura de autoridade e narrativa única, mas como uma perspectiva e forma de representar a região.

É interessante também que a musa de Le Mayeur não era anônima como muitas fontes de inspiração foram para os modernistas - seja por serem mulheres, seja por serem não-europeias, ou ambos. Nesse caso, Ni Pollock, dançarina de Legong, foi sua modelo, musa e esposa - representada no retrato acima.

Temple Festival in Bali by Adrien-Jean le Mayeur de Merprès

c. 1937, oil on canvas

 

Às vezes, eu hesito em me aventurar nas pesquisas pra além da área que eu foco porque sei que não vou conseguir abarcar tudo, mas com o tempo fui entendendo que 1. mesmo no assunto que eu foco, nunca vou conseguir abarcar tudo rs e 2. qual a alternativa? saber zero?

O caminho que encontrei então foi esse: não ter a pretensão de apresentar uma visão mega aprofundada e dar conta de todos os debates, mas engajar com aquilo que me toca e me atrai com atenção - inclusive pra conectar com o que eu já conheço e ainda vou conhecer.

Espero que, pra você que leu, esse apanhado de obras tenha servido como porta de entrada pro interesse nas artes do sudeste Asiático, também <3






 
 
 

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